
A prostituição no tempo da Reforma e do Renascimento
No tempo da Reforma Católica e da Contra-Reforma, o negócio da prostituição sofreu grandes alterações a nível social, moral e económico, tanto devido à intolerância dos protestantes como dos católicos. Como diz STOREY (2008: 4), a prostituição estava na raiz das preocupações destes reformadores, no que diz respeito à sexualidade feminina e à moralidade social, pois as prostitutas eram um exemplo de tudo aquilo que as mulheres não deviam ser ou fazer, mais ainda, eram consideradas uma doença da sociedade:
"(…) prostitution was seen as a ‘canker’, a symptom of moral degeneracy which could spread like a disease throughout society, multiplying what Borromeo referred to as the ‘occasions to sin.’ Prostitutes promoted the ruin of others by seducing young men and setting a bad example to other young women. Sociability around prostitutes was associated with general indiscipline and a range of other vices: drinking, gambling, dancing, vanity and greed."
Acabou a política de tolerância para com os intervenientes, como nos diz VAN de POL (2010: 2): “Prostitutes were no longer sinners who could be saved, they were malefators who needed to be punished.” Assim como já não era bem visto estar relacionado com o negócio dos bordéis. A partir do século XVI, os bordéis municipais que no século anterior tinham florescido em grande escala foram encerrados, principalmente nas cidades da Europa Protestante. O estatuto “seguro” e oficial que as prostitutas mantinham até ao século XV desapareceu. De acordo com OTIS (1985: 50), no final do século XV e início do século XVI surgiram novos termos para as designar, desta vez com caráter pejorativo: cantonnières, paillardes, garces, femmes lubriques, femmes déshonnêtes, femmes dissolutes, pobres, pecadoras ou raparigas perdidas. Como descrevem os autores ROBERTS (1996: 127-130); OTIS (1985: 42-45) e NORBERG (2013: 396-397), as prostitutas que trabalhavam por conta própria ou em estabelecimentos privados voltaram a ser perseguidas e banidas dos espaços públicos, em diversas cidades, como é o caso de Amesterdão e Montpellier. Segundo STOREY (2008: 4) e BRACKETT (1993: 275-277), a Itália foi um dos países que apresentou uma mudança menos drástica e radical ao negócio da prostituição, pois nas suas diversas cidades grande parte das zonas reservadas à prostituição não foram encerradas. Contudo, foram tomadas medidas mais restritivas quanto aos seus intervenientes.
A prostituição voltou a ser considerada uma atividade marginal e ilícita. Uma das razões usada para justificar tais considerações é o aparecimento da sífilis. Esta foi identificada pela primeira vez em 1494, entre os soldados franceses que estavam destacados em Nápoles. No entanto, como explica SCHLEINER (1994: 499), a sífilis só foi reconhecida como venérea num período após 1530. Entre as várias teorias, segundo SCHLEINER (1994: 502-506) e SIENA (2013: 466), a única convicção dos médicos era de que as mulheres eram o agente infecioso desta doença, em especial as mulheres promíscuas. Daí surgiu a crença de que as prostitutas eram as principais responsáveis.
Como explica ROSSIAUD (1988: 50), tendo em conta a mentalidade predominante na época, a justificação que se dava a fenómenos como epidemias, doenças, guerras ou desastres naturais, era que estes eram um sinal da ira ou do desagrado de Deus. Esta doença foi interpretada como um castigo que punia o povo pelos seus pecados carnais.[1]
As prostitutas tornaram-se, assim, uma ameaça e consequentemente um alvo dos reformadores protestantes e dos católicos. Durante anos foram a figura mais associada à origem e transmissão da doença, assim como outros grupos marginalizados. As prostitutas eram consideradas um “grupo de risco” que necessitava de ser controlado e confinado, daí que no século XVI se tenha dado novamente grande importância à criação de instituições que as pudessem isolar da sociedade.
Contudo, como diz ROSSIAUD (1988: 50): “Prostitution did not die with the municipal brothel, but it became more expensive, more dangerous, and more shameful.”
Notas de rodapé
[1] Teoria que foi defendida pelos protestantes, especialmente os Calvinistas, como evidencia a seguinte citação de Calvino: “I ask you, after fifty years is it not seen that God has raised up new illnesses against fornication? Whence came this pox, all these foulnesses which there is no need to list? Whence do all these things come, unless God has displayed vengeances that were unknown previously? The world was amazed, and for a time it is true that people were terrified; but even today they have not observed the hand of God. And today we are accustomed to know that the despisers of God, those who are dissolute in their lives, the fornicators, when they abandon themselves to every villainy, only thumb their noses. If God strikes them with some sort of leprosy, as this truly is, so that they are eaten by cancer or other foulness, they do not leave off following their course, and do nothing but jeer.” Vide COTTRET (2000: 306).
As cortesãs do Renascimento
É no contexto social e cultural do Renascimento que surgem as cortesãs. Segundo, SHEMEK (2007: 101), entende-se nesta altura cortesã como:
"(...) an educated and talented woman who, in the courtly and urban society of early modern Italy, provided sexual services to wealthy and prominent men. Despite her name, the courtesan was not a direct counterpart to the male courtier (cortegiano) who was usually a court diplomat or intellectual. She is also not to be confused with the palace lady or princess (dama, donna di pallazo) or with the lady-in-waiting (donzella, damigella)."
Atualmente a “cortesã” é comummente identificada como uma prostituta. No entanto, analisando a história e a vida destas mulheres veremos que esta identificação é enganadoramente simples. Como explica GIUSTI (2014: 15-16), na sociedade do século XV e XVI o termo “cortesã” referia-se tanto a uma prostituta de elite, como a uma dama da corte. Os termos “cortesana puttana” e “cortesana onesta” utilizados pela sociedade italiana evidenciam a ambiguidade da palavra, assim como da realidade social vivida. A palavra “cortesã” associada a uma prostituta tem, segundo Arturo Graf (poeta, literato e crítico italiano), em Attraverso il Cinquecento, de 1888, a sua origem no Diarium de Joannes Burchard, mestre de cerimónias do Papa Alexandre VI, que, em 1498, se referiu a Cursetta, uma mulher que identifica como uma prostituta honesta, ou cortesã. Também Matteo Bandello, em Le Novelle, publicada pela primeira vez em 1554, se havia referido a uma cortesã como sendo uma prostituta, pela venda de serviços sexuais.
O termo “cortesã honesta” como indica GIUSTI (2014: 16-18) é mencionado também por Burchard, no seu diário Liber Notarum, referindo-se à participação de cinquenta cortesãs no banquete realizado em 1501, no palácio de César Bórgia, filho do Papa Alexandre VI. Este termo aparece ainda no censo de Roma em 1517. Como é indicado por GIUSTI (2014), ao longo dos tempos, vários autores têm tentado interpretar e explicar o verdadeiro significado desta expressão. Por exemplo, Paul Larivaille na sua obra La vie quotidienne des courtisanes en Italie au temps de la Renaissance: Rome et Venise, XVe et XVIe siecles (1975), considera que o termo “honesta” não se refere a uma mulher casta, mas sim a uma mulher instruída e bem-educada. E Giorgio Pandon, em Il mondo delle cortigiane nella letteratura rinascimentale (1990), interpreta o adjetivo “honesta” como sendo significado de que a prostituição já não era um negócio, mas uma arte de viver. Há também que ter em conta a obra de CASTIGLIONE (1528), que não só elevou o estatuto do cortesão, mas também beneficiou a figura da cortesã, sendo esta reconhecida como uma mulher de educação, requinte e virtude. E como explica ROSENTHAL (1992:5 9-60; 67), muitas vezes era difícil de distingui-las das mulheres de respeito.
As cortesãs ficaram, assim, conhecidas como as “prostitutas decentes” ou honestas, não havendo nas leis, como explica ROSENTHAL (1992: 67-68), uma definição legal para o seu estatuto, como havia para prostitutas, pelo menos em Veneza, no ano de 1542. Contudo, no final do século XVI, o termo “cortesã” começou a ser utilizado de forma comum para designar qualquer mulher que vivesse da prostituição.
Tendo em conta o étimo da palavra, a cortesã era uma mulher que frequentava a corte. Era normalmente uma mulher de baixo ou médio estatuto, de grande beleza e charme, conhecida, inclusivamente, pelos seus talentos nas artes e na literatura mas principalmente pelos seus dotes nas artes da sedução. Era muitas vezes a sua própria família que a preparava e treinava em áreas como literatura, música, dança e nos modos e comportamentos próprios das elites, de forma a torná-la uma jovem de estilo requintado e extremamente atrativa, uma vez que também era feito um grande investimento em roupas e cosméticos. Esta forma de vida das cortesãs é descrita por BASSANESE (1988: 296-297):
"Like the ladies of the court, the honest courtesan dedicated herself to the creation of an external image of grace and beauty, of cleverness, poise and elegance, which had to be bolstered by specific abilities in music and in witty conversation. To these qualities were added the ability of discuss and understand the cultural agenda common to all educated contemporaries and the necessary appearance of propriety and decorum."
De acordo com SHEMEK (2007: 101-102) existiam vários termos para identificar mulheres que vendiam serviços sexuais, tais como: meretriz; puttana; donna de partio; donna publica, cortesãs, etc. As cortesãs eram consideradas as prostitutas de luxo, as que se distinguiam das prostitutas comuns que se encontravam nos bordéis e/ou nas ruas. Como explicam ROSSIAUD (1988: 132-133) e WITCOMBE (2002: 275-277), pela sua educação privilegiada conseguiam frequentar determinados círculos sociais aristocráticos e requintados, e captar a atenção dos homens mais ricos e influentes: nobres, reis, banqueiros, embaixadores, papas, etc. Os seus clientes eram homens de classe social elevada, os mais seletivos e pouco numerosos. O seu envolvimento com estes homens baseava-se na satisfação mútua de determinados requisitos pessoais e sociais. Por parte dos clientes, esperava-se que as cortesãs os satisfizessem a nível erótico, mas também que fossem companheiras dignas destes homens que acompanhavam a festas, a tertúlias nos salões e nos palácios, a bailes, etc. Sabendo socializar com homens de estatuto e formalidades diferentes, elas eram amantes, confidentes, conselheiras, acompanhantes de eventos requintados, cantoras, dançarinas, etc.
Como explicam SHEMEK (2007: 102), GIUSTI (2014: 23-24), SMITH (2008: 496-497) e WITCOMBE (2002: 275-277, os benefícios que as cortesãs recebiam pelos seus serviços e relacionamentos com figuras influentes da sociedade ultrapassavam os bens materiais que recebiam em joias, propriedades e dinheiro, dos quais também beneficiava a família, que investira na sua educação. Elas recebiam apoio e proteção de pessoas poderosas, o que lhes permitia a entrada em círculos destinados apenas ao sexo masculino. Algumas destas mulheres alcançavam alguma independência e reconhecimento social.
De acordo com BRACKETT (1993: 294) e ROSSIAUD (132-135), a cortesã bem-sucedida era aquela que estava dependente das suas habilidades como amante, que era capaz de seduzir e encantar qualquer homem, mas também dependia da sua personalidade de mulher determinada, culta, sociável e desejável. Segundo WITCOMBE (2002: 275), a cortesã era “in modern parlance (...) a woman who had acquired celebrity status and who used the opportunities that such status offered for psychological and social maneuvering.”
Como explicam WITCOMBE (2002: 275), ROSENTHAL (1989: 232-233) e GIUSTI (2014: 23-24), o seu estatuto tornava-a uma mulher tolerada. Causava também alguma admiração e inveja às mulheres, devido à sua excecional educação e privilégios sociais que lhe permitiam alcançar um elevado grau de autonomia, tendo em conta a sua condição. A independência destas mulheres é, contudo, sobrevalorizada por alguns historiadores. As que eram bem-sucedidas na sua carreira tinham de fato maior liberdade de frequentarem círculos normalmente restritos ao domínio masculino, de terem uma educação rara para o sexo feminino, e possuírem casa e bens que também eram pouco frequentes. No entanto, o sucesso de muitas destas mulheres estava condicionado pela capacidade de poderem praticar a sua profissão sem grandes limitações, fator que dependia dos governos locais, que na sua maioria lhes impunham grandes restrições. A sorte e o sucesso de muitas destas mulheres dependiam, também e principalmente, dos seus conhecimentos, pois ao socializarem com homens de classe social elevada, elas tiravam o máximo partido das suas relações. Além da oferta de bens e de um rendimento regular, que lhes permitia manter um estilo de vida seleto, muitos dos seus clientes intercediam por elas nos tribunais, protegendo-as de acusações e punições.
Como explicam ROSENTHAL (1992: 2-3), WITCOMBE (2002: 275), GIUSTI (2014: 23-25) e BRACKETT (1993), mesmo com as diversas restrições impostas, sabemos que estas mulheres desafiavam o seu tempo. Por exemplo ao fazerem-se passar por mulheres nobres.
As cidades italianas foram o principal centro de destaque e atuação das cortesãs, por serem as mais tolerantes. Em especial Veneza, que era considerada a cidade das cortesãs, das mulheres bonitas e da vida sem moral. Era apreciada por ser uma cidade muito transigente, e como tal era muito visitada por viajantes atraídos pela reputação de cidade de mulheres belas. Em Veneza, viveram algumas das cortesãs mais conhecidas como, por exemplo, Verónica Franco. No entanto, como dão conta SMITH (2008: 496) e BRACKETT (1993), gradualmente também as repressões religiosas para com a prostituição chegaram as cidades italianas.
Cortesãs do Renascimento Italiano
Imperia Cognata
Imperia Cognata nasceu em 1481 em Roma. Era filha de Diana Cognati, uma ex-cortesã, que a introduziu na profissão a fim de se sustentar. Com o propósito de se distinguir na atividade, para além de aprender as artes do amor, Impéria estudou latim, música e poesia com o mestre Niccolo Campana. Tornou-se famosa pelos seus sonetos e madrigais. No século XVI, Imperia já se tornara uma das mais requisitadas e famosas cortesãs da época, por clientes poderosos e influentes tais como diplomatas, magnatas e membros do Vaticano. A todos eles cobrava dispendiosos preços pelos seus serviços
Imperia foi imortalizada na obra Le Novelle (1554), de Matteo Bandello, pela sua beleza e pelo seu talento enquanto escritora, mas também pela sua riqueza e pelo seu requinte e sofisticação. Descrevendo o luxo da casa de Imperia, Bandello contou a história de um suposto embaixador espanhol, que ouvindo falar dos encantos de Impéria e da sua riqueza resolveu conhecê-la pessoalmente. Durante a visita à sua casa, o embaixador terá cuspido na cara de um criado de Imperia, explicando ao criado que este não se devia sentir ofendido, pois só o fizera porque a sua cara seria a coisa mais vulgar e feia que se encontrava naquela casa.
Imperia manteve uma ligação muito próxima com o famoso pintor renascentista Rafael Sanzio, e diz-se que terá inspirado muitos dos seus quadros e frescos. Sanzio tê-la-á apresentado ao seu mecenas, o banqueiro Agostino Chigi, de quem Impéria se tornou amante. Chigi tornou-se também seu patrocinador e protetor. Este comprou a vila Chigi, que era utilizada por Impéria como salão de festas e tertúlias literárias – esta era muito visitada por intelectuais tais como o poeta Bernardino Capella, e os humanistas Angelo Colocci e Filippo Beroaldo. Numa das suas sessões, Imperia terá conhecido Angelo del Bufalo, pelo qual se terá apaixonado. Mantiveram, no entanto, um relacionamento de curta duração, pois del Buffalo terá posto termo à relação, o que porventura levou ao suicídio de Impéria em 1512.
Esta sua relação com del Buffalo pode ser vista como trágica, por ser a causadora da “ruína” da cortesã que alcançara o sucesso. Imperia foi relembrada como uma das mulheres mais bonitas, inteligentes, ricas e amadas da sua época. Alcançando e possuindo tudo aquilo que uma cortesã alguma vez sonhara, como nos indica Bandello:
"Chi fosse I´Imperia cortegiana di Roma, e quando a suoi giorni sia stata bella e senza fine da grandissimi uomini e ricchi amata, credo che la maggior parte di noi o per udita o per vista abbia conosciuto, che molti qui sono che in Roma a quei tempi erano. Ma tra gli altri, che quella sommamente amarono, fu il Signor Angelo da Bufalo, uomo de la persona valente, umano, gentile e ricchissimo. Egli molti anni in suo poter la tenne e fu da lei ferventissamente amato, come la fine di lei dimostro."
Tullia d´Aragona
Tullia d´Aragona nasceu entre 1505 e 1510 em Roma, também ela filha de uma antiga cortesã, Giulia Campana, e supostamente fruto de uma relação ilegítima com o cardeal Luigi d´Aragona, embora fosse reconhecida por Costanzo Palmieri d´Aragona, como sua filha legítima.
Tullia que aspirava a entrar nos grandes círculos aristocráticos teve instrução em música, literatura e poesia. Na sua infância viveu em Siena, onde terá adquirido fluência em toscano, uma caraterística marcante no seu trabalho e na sua conversação. Como indica RUSSEL (1994: 26), graças ao seu grande talento e eloquência passou a frequentar círculos literários influentes com figuras como Lodovico Martelli, Claudio Tolomei, Filippo Strozzi, Francisco Maria Molza e Paolo Emilio. O seu talento foi reconhecido por autores como Jacopo Nardi ou Sperone Speroni, que a representavam nos seus trabalhos com grandes elogios. No entanto, outros como Pietro Aretino atacaram Tullia nas suas obras, ao denegri-la devido à sua atividade de cortesã. Tullia, no entanto, não se deixou intimidar, pois continuou a escrever e a ganhar o apoio de mecenas, muitos deles ligados à imprensa veneziana. Aos 30 anos já era considerada das mulheres mais originais e versáteis na arte da escrita.
De acordo com TOURNIER (2006: 110), por outro lado, Tullia d´Aragona também alcançou imenso sucesso na sua carreira de cortesã, pois o seu nome constava no catálogo das melhores cortesãs das cidades italianas, catálogo oferecido aos visitantes mais ricos, devido à extrema curiosidade que suscitavam as cortesãs.
Em 1543, estaria a viver em Siena, onde supostamente terá casado com Silvestro Guicciardini, com quem teve um filho. Pouco mais sabemos deste relacionamento a não ser, como indicam RUSSELL (1994: 27) e HAIRSTON (2007: 27), o que se refere numa carta de Agnolo Firenzuola, que indica que Tullia terá deixado o marido morrer à fome.
Tullia d´Aragona viveu durante alguns períodos nas cidades de Roma, Siena, Ferrara, Veneza e Florença. As suas constantes mudanças deveram-se em parte à perseguição de prostitutas e cortesãs, por parte de grupos e movimentos religiosos. Estes pretendiam obrigá-las a vestir roupas distintas das mulheres respeitáveis, e proibi-las de usar joias, ou de frequentar certos espaços. Em Florença, por volta de 1547, Tullia que não seguia as normas estabelecidas pelas autoridades chegou a ser presa por desrespeitá-las. Segundo BASSNETT (1991: 49), existem várias histórias sobre as supostas transgressões de Tullia. Uma delas contava que D´Aragona foi presa por estar a usar roupas proibidas às cortesãs. Outra que esta se recusava a usar um manto amarelo, vestuário próprio para identificar as cortesãs. No entanto, graças às suas ligações com pessoas influentes e poderosas como a duquesa Eleanora de Toledo e o duque Cosimo I, que intercederam por ela em tribunal, alegando que ela tinha uma profissão honrada de poetisa e filósofa, esta foi libertada.
Tendo em conta as adversidades sociais que enfrentava e punham em causa a sua liberdade, mais razões existiam para Tullia se estabelecer como uma mulher de letras. Assim foi. Em 1547, foram publicadas duas das suas obras: Rime delle Signora Tullia d´Aragona et diversi a lei, que incluía um conjunto de poemas, uns escritos por si e dedicados a vários dos homens com quem mantinha algum tipo de relacionamento e muitos outros poemas, escritos por diversos dos seus admiradores, em sua homenagem. Esta obra foi dedicada por Tullia à duquesa Elanora de Toledo. E uma obra em prosa intitulada Dialogo della infinita di amore, uma obra que descreve um diálogo entre Tullia e o seu amigo Benedetto Varchi, sobre a eternidade do amor.
Tullia voltou a Roma em 1548, onde permaneceu até à sua morte em 1556. Foi sepultada na Igreja de Santo Agostino. No entanto, mesmo após a sua morte, a sua fama de cortesã e poetisa mantiveram-se, pois em 1560 foi publicada a obra Il Mechino altramente detto il Guerrino, cuja autoria foi atribuída a Tullia. Alguns outros dos seus sonetos foram incluídos em antologias do século XVI, tais como Il libro sesto delle rime di diversi eccelenti autori, editado por Andrea Arrivabene.
Veronica Franco
Veronica Franco nasceu em 1545 em Veneza e não era de baixo estatuto. Pertencia aos cittadini – os cidadãos autóctones da cidade – embora a sua família não fosse rica ou influente. Veronica como muitas das outras cortesãs foi iniciada no ramo pela sua mãe Paola Fracassa, antiga cortesã, que necessitava de dinheiro. Esta tomou a seu cargo a administração do dinheiro e dos bens da filha, que rapidamente singrou na profissão, pois seduziu muitas figuras importantes. Por conseguinte antes dos vinte anos já fazia parte do seletivo catálogo das cortesãs venezianas, juntamente com a mãe. Ainda durante a sua adolescência Veronica casou com o médico Paolo Panizza, embora fosse uma relação fugaz, pois rapidamente se separaram. Veronica teve seis filhos. Contudo, só três chegaram à idade adulta. Segundo o seu testamento, todos eles eram de pais diferentes, entre estes o nobre Andrea Tron, membro das famílias mais poderosas de Veneza.
Veronica tornou-se uma figura bastante proeminente na sociedade veneziana não só pelo seu talento enquanto amante, mas inclusive pelo seu gosto e estudo das artes e de literatura, e também devido à vocação que tinha para a escrita. Tornou-se uma das mulheres mais bem instruídas e eruditas da época. Como explica ROSENTHAL (1989: 237), tendo em consideração o seu estatuto, era difícil ela ter acesso aos estudos necessários para ser uma mulher tão culta e refinada, e como a sua instrução não foi documentada, deduzimos que ela beneficiou da educação providenciada aos seus três irmãos.
Entre 1570 e 1580, Verónica foi introduzida nos círculos mais elitistas de inteletuais e aristocratas, por Domenico Venier. Este geria um salão de grande influência, no qual os poemas de Veronica foram divulgados. Tornou-se também seu protetor. Nos círculos literários nos quais se inseriu rapidamente lhe reconheceram e elogiaram o grande talento de poetisa. Veronica foi autora de poemas e cartas. Entre os seus trabalhos poéticos o que mais se destacou foi Terze Rime (1575).
O seu trabalho foi merecedor de grande louvor por ser feito por uma mulher, em especial uma cortesã, numa sociedade ainda dominada pelo discurso masculino. Foi igualmente importante na defesa da entrada das mulheres na vida pública. Através do seu trabalho, Veronica foi mais além, reescreveu a visão misógina e vulgar da cortesã criada por muitos autores contemporâneos como Pietro Aretino e Maffio Venier – a imagem da cortesã como uma prostituta comum, vigarista, oportunista, gananciosa e traiçoeira. Veronica Franco, por seu lado, defende a cortesã como uma mulher inteletual, habilidosa e escritora, pedindo reconhecimento público pelos seus feitos. Tenta demonstrar que o que ela pretende oferecer aos homens é uma companhia culta e eloquente. Veronica utiliza o seu poema Terze rime (1575) como uma sátira e um debate, em forma de perguntas e respostas entre ela e um poeta anónimo que é referido como o incerto autore. Ela tem de se defender contra uma poderosa oposição que tenta diminuir o seu estatuto na sociedade. Graças à sua grande mestria poética ela demonstra ser digna do nome de cortesã honesta, mulher capaz de lutar habilidosamente para entrar na esfera masculina
A sua entrada na vida pública e social veneziana não era de todo bem vista, quer pelas autoridades que tinham dificuldade em distinguir as cortesãs das restantes mulheres, quer por muitos homens e mulheres que invejavam o apoio e proteção que as cortesãs recebiam de figuras ricas e influentes da sociedade. Tal aconteceu, em parte, por também desejarem alcançar aclamação literária e social, e também porque viam as cortesãs como ameaça para as instituições e estruturas hierárquicas. Muitos destes, por uma razão ou outra, tentavam denegrir a imagem da cortesã, mostrando-a como uma simples prostituta venal. Veronica foi vítima de ataques por parte destes homens no campo literário, especialmente por Maffio Venier, com o poema “Veronica, Ver Unica Puttana”, onde ridiculariza o fato de uma prostituta ter a pretensão de entrar nos círculos literários venezianos, descrevendo-a numa imagem de perversidade, degradação e doença. Veronica Franco também foi vítima de ataques na vida social, pois ela foi denunciada perante o tribunal da Inquisição sob acusações de bruxaria, encantamentos e prostituição, pelo tutor do seu filho. No entanto, graças aos indivíduos poderosos que intercederam por ela, assim como graças à sua habilidosa retórica, ela defendeu-se com grande sucesso, sendo ilibada e tornando-se merecedora do nome de cortesã honesta.
Em 1580, publicou a obra Lettere familiare a diversi, com dois sonetos dedicados a Henrique III, de França. Até à sua morte em 1591, pouco mais sabemos da sua vida.
Veronica, como muitas outras mulheres, utilizou os seus talentos físicos e artísticos para sobreviver e se distinguir em meios sociais dominados por homens. Ela foi considerada uma das mais belas e cultas cortesãs de Veneza, mas ao mesmo tempo foi atacada pela sua profissão. Tentaram igualmente denegri-la enquanto artista, por ter a pretensão de ingressar em círculos sociais proibidos a mulheres normais e ainda mais a cortesãs. No entanto, Veronica Franco demonstrou que era talentosa o suficiente para singrar como figura literária. Embora tal como Imperia e Tullia, Veronica tivesse também um grande talento, provavelmente cada uma delas só conseguiu alcançar reconhecimento e sucesso no meio literário porque através da sua profissão de cortesã se tornaram amigas e amantes das figuras mais proeminentes e influentes de Itália. Tiraram assim partido de ambas as suas atividades profissionais. Como nos diz BASSANESE (1988: 295):
The Italian cortigiana used any literary talent in her advantage: her letters not only communicated but also cajoled; her poetry won her more status, money and fame from those she eulogized; her verse was advertisement as well as art. To attract public approbation and positive consensus, she assimilated the male-proposed models in fashion, borrowed the man-made idiom of traditional Petrarchism, and composed herself physically and culturally as the erotic projection of male fantasies (...). More than any lady, the courtesan had to please and appease the males who were concurrently her admirers, her subjects, and her source of income, status, and reputation.
O título de cortesã honesta e a fama alcançados por Veronica representam, contudo, os avanços que esta mulher alcançou dentro da sociedade renascentista. Através da sua escrita Veronica Franco ganhou, por mérito próprio, respeito social e serviu de impulso para a desejada igualdade intelectual das mulheres.
Barbara Raffacani Salutati
Em relação a Barbara Raffacani Salutati existem poucas informações sobre a sua vida, a maioria relacionadas com o seu envolvimento com Nicolau Maquiavel. Este foi um romance assumido e visível para todos, apesar de Maquiavel ser casado com Marietta Corsini. A comédia La Clizia, de Maquiavel, retrata o seu amor por Barbara. O mesmo acontece com muitas das cartas que dedicou a esta. Barbara terá também escrito as canções para a comédia La Mandragola, de Maquiavel.
Bárbara ficou conhecida em Florença, no século XVI, pelas suas atividades como cantora, poetisa, compositora e cortesã, sendo, contudo, mais elogiada pelo seu mérito como cantora. O reconhecimento dos seus dotes nestas áreas foi feito por Giorgio Vasari, quando este comenta o retrato de Barbara Salutati pintado por Domenico Puligo. “[Puligo] painted a portrait of Barbara Fiorentina, famous at that time, a beautiful courtesan and much loved by many, not only for her beauty, but also for her fine manners, and particularly for being an excellent musician and a divine singer.”
Através da análise destas figuras é possível concluir que as cortesãs desempenhavam um papel ambíguo na sociedade renascentista, pois eram consideradas mulheres promíscuas, que vendiam o seu corpo ou a sua companhia a troco de bens, de riqueza ou de ascensão social, embora associadas a uma vida de luxo, de requinte e de cultura. Por outro lado, as mulheres que conseguiam singrar nesta profissão e que eventualmente aprofundassem os seus dotes noutra área como a música ou a poesia eram reconhecidas por muitos como artistas respeitáveis, as cortesãs honestas. Ainda assim, a sua vida estava longe de ser fácil. Numa sociedade dominada por homens, a sua entrada nas esferas de domínio masculino tornava-as também vítimas de constantes ataques dirigidos ao seu trabalho e ao seu caráter. A mobilidade social destas mulheres quebrava todas as barreiras, pois entravam em esferas proibidas ao seu sexo, e à sua condição, uma vez que mantinham relações com e eram protegidas por cidadãos de classe social elevada.