
Mitos sobre a criação da mulher e a sensualidade feminina
A análise das histórias de Eva e Pandora, duas figuras míticas, é relevante para esta investigação, pois são duas personagens controversas, que surgiram em culturas de caráter patriarcal e com tendências misóginas.[1] Nestas culturas, os mitos de criação mostram uma imagem negativa das mulheres, retratando-as como um mal da humanidade como seres inferiores aos homens. Eva e Pandora são retratadas como as primeiras mulheres da história, através das quais o mal chegou ao mundo. Qualquer um dos mitos providencia um olhar prévio sobre o tipo de relacionamento existente entre homens e mulheres.
Mito de Pandora
Segundo o mito grego descrito por Hesíodo no século VIII a. C., a origem de Pandora, a primeira mulher, terá sido uma vingança, um castigo dos deuses para os homens. De acordo com o mito grego, foi a mulher que trouxe os males e o sofrimento à humanidade, pois Prometeu roubou o fogo aos deuses, e Zeus irado com tal traição prometeu trazer o maior dos males para a terra, como tal no Olimpo criou Pandora. (Hesíodo, Trabalhos e Dias , 60-89).
"Ordenou ao ilustre Hefesto que misturasse, rapidamente,
terra com água, infundisse a voz e o vigor
do homem e assimilasse o seu rosto ao das deusas imortais,
a uma bela e deliciosa figura de donzela. De seguida, a Atena
que lhe ensinasse os trabalhos, a tecer a tela trabalhada com muita arte;
a Afrodite que derramasse na sua cabeça um dourado encanto,
um avassalador desejo e inquietantes carícias;
a Hermes, mensageiro de Argifontes, ordenou incutir nela
cínica inteligência e carácter volúvel.
Assim disse e eles obedeceram ao soberano Zeus Crónida.
Prontamente o ilustre coxo modelou da terra um ser semelhante
a uma obsequiosa donzela, de acordo com a determinação do Crónida;
a deusa Atena, de olhos garços, cingiu-a e adornou-a;
as divinas Graças e a augusta Persuasão
colocaram à volta do seu pescoço doirados colares;
as Horas de bela cabeleira coroaram-na com flores primaveris;
Palas Atena aplicou todos os cosméticos à sua pele;
e depois o mensageiro Argifontes aplicou no seu carácter
mentiras, sedutoras palavras e um carácter volúvel,
segundo a vontade de Zeus tonitruante. Além disso, o arauto dos deuses
infundiu-lhe a voz e chamou a esta mulher
Pandora, porque todos os habitantes das moradas Olímpicas
lhe concederam um dom, sofrimentos para os homens comedores de pão.
Depois que terminou o árduo e irresistível dolo,
o pai enviou a Epimeteu o ilustre Argifontes,
célere mensageiro dos deuses, com o dom. Epimeteu não
se lembrou de que Prometeu lhe tinha dito para não
aceitar o dom vindo de Zeus Olímpico, mas que logo o devolvesse,
para que não chegasse nenhum mal aos mortais.
Depois que o recebeu, quando já tinha o mal compreendeu."[2]
Pandora foi enviada como prenda a Epimeteu, irmão de Prometeu, que fascinando por esta a tomou em casamento. Pandora é considerada um kalon kakon – um mal bonito. Como explicam ZEITLIN (1996: 56) e KING (1998: 27), uma mulher com um belo exterior, semelhante às deusas imortais, extremamente desejável, mas com um interior abominável e nocivo.
A Pandora foi-lhe oferecida uma vasilha, a qual não deveria abrir. Contudo, devido ao seu caráter dissimulado e pernicioso, um dos grandes defeitos de Pandora era a curiosidade, devido à qual a mulher desobedeceu e abriu a vasilha para ver o que continha. Dela imediatamente escaparam todos os males que lá estavam enclausurados e que os homens desconheciam: a guerra, a mentira, o ódio, a velhice, a doença, o pesar, etc. Pandora tentou fechar, mas infelizmente era tarde demais, pois a vasilha já só continha a esperança.
A figura de Pandora representa assim a origem dos males da humanidade, pois foi devido à sua natureza enganosa e traiçoeira e ao seu caráter frívolo e malicioso que a humanidade conheceu a doença, a morte e os problemas que a assolam. De fato, antes da ação de Pandora reinava a paz, a felicidade e o desconhecimento do mal entre os homens. A mulher passa assim a ser encarada como personificação do mal.
O que se pressupõe é que união de Pandora a Epimeteu representava também o laço do matrimónio entre o homem e a mulher. Todo o homem que escolhesse casar com uma mulher teria uma longa vida de trabalho árduo, cheia de doenças, guerras, velhice, dor ao lado de uma criatura maldosa e traiçoeira. Esta união visava também a procriação, senão o homem morreria sozinho, sem ninguém que cuidasse de si na velhice, e como tal uma continuação das desgraças para os mortais. Como explica KING (2002: 78), através da figura de Pandora concluímos que os gregos consideravam a mulher como um mal necessário. Um mal por causa do seu caráter indisciplinado, licencioso e da sua falta de auto-controle, no entanto, era necessária para a procriação e continuação da espécie.
Mito de Eva
À semelhança de Pandora também Eva, a primeira mulher segundo a Bíblia, foi criada depois do homem, embora ambas com propósitos distintos, pois enquanto Pandora é criada como uma punição para o homem, Eva foi criada como sua companheira e auxiliar: “Javé Deus disse: «Não é bom que o homem esteja sozinho. Vou fazer-lhe uma auxiliar que lhe seja semelhante».” (Gn 2:18). No entanto, tal como Pandora, Eva também é considerada a portadora do mal para a humanidade por ter desobedecido a Deus ao comer o fruto da árvore proibida, ou seja, a árvore que lhe traria o dom do conhecimento, e ao persuadir também Adão a comê-lo.
“A mulher respondeu à serpente: «Nós podemos comer dos frutos das árvores do jardim. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: “Não comereis dele nem lhe tocareis, de contrário morrereis”» Então a serpente disse à mulher: «Não, não morrereis. Mas Deus sabe que, no dia em que comerdes o fruto, os vossos olhos abrir-se-ão e tornar-vos-eis como deuses, conhecedores do bem e do mal.» Então a mulher viu que a árvore tentava o apetite, era uma delícia para os olhos e desejável para adquirir discernimento. Pegou no fruto e comeu-o; depois deu-o também ao marido que estava com ela, e também ele comeu. Então abriram-se os olhos aos dois, e eles perceberam que estavam nus. Entrelaçaram folhas de figueira e fizeram tangas.” (Gn 3: 2-7)
Após comerem o fruto da árvore do conhecimento, Eva e Adão ganharam noção de que estavam nus, assim como tomaram conhecimento do bem e do mal, este que levaria à sua infelicidade e consequentemente à sua degradação. Por terem desobedecido às ordens de Deus e por terem pecado também foram punidos: pois foram expulsos do Paraíso e condenados com a mortalidade e trabalho árduo, e as mulheres com a procriação acompanhada de grandes dores no parto e a submissão .
“Javé Deus disse então à mulher: «Vou fazer-te sofrer muito na tua gravidez: entre dores, darás à luz os teus filhos; a paixão vai arrastar-te para marido, e ele te dominará». Javé Deus disse ao homem: «Já que deste ouvidos à tua mulher e comeste da árvore cujo fruto Eu te tinha proibido comer, maldita seja a terra por tua causa. Enquanto víveres, dela te alimentarás com fadiga. A terra produzir-te-á espinhos e ervas daninhas, e comerás a erva dos campos. Comerás o teu pão com o suor do teu rosto, até que voltes para a terra, pois dela foste tirado. Tu és pó, e ao pó voltaras» ” (Gn 3: 16-19)
Ambas as mulheres receberam ordens específicas, às quais desobedeceram. Como consequência a humanidade padeceu. Contudo, é a criação de ambas que garante a continuição da humanidade, pois representa a definição de dois sexos: feminino e masculino, ambos complementares um ao outro, embora os mitos aqui representados relatem a criação das mulheres como uma categoria secundária, na medida que ambas foram criadas após o homem, uma para seu benefício, outra como seu castigo. Como explica ZEITLIN (1996: 60-61), Eva tornou-se a mãe de toda a humanidade. (Gn 3: 20). Pandora, por outro lado, está ligada a criação da “raça de mulheres”, sem as quais não existiria humanidade. No entanto, a ideia transmitida através destas narrativas míticas é de que o mundo era um local melhor antes da criação das mulheres, ou seja, elas são vistas como uma outra raça, forasteiras que foram introduzidas como ameaças no mundo masculino, por assim dizer que os males dos homens, como a sua infelicidade devem-se à mulher.
Segundo estas histórias, foi devido ao caráter dissimulado, astuto, traiçoeiro e sedutor das mulheres, que os homens foram levados a cair no seu enleio e consequentemente adveio a desgraça para a humanidade. A mulher é assim encarada como uma tentação para o homem e a personificação do mal.
Como indica ABREU (2007: 66), a interpretação destas histórias sobre a criação das mulheres demonstra uma clara tentativa de desresponsabilização dos atos dos homens, pois em ambas as narrativas estes tendem a justificar as suas ações e responsabilidades como consequência de confiarem nas terríveis e perversas criaturas que são as mulheres. Consideram-nas traiçoeiras, sendo impossível confiar nestas, pois como diz ZEITLIN (1996: 56): “Man and woman cannot converse with one another because she conceals the truth in order to deceive.” Ou seja, são histórias que transmitem a ideia de que o homem pecou e como tal foi punido por “dar ouvidos” à mulher. Com estas narrativas demonstra-se a condição de inferioridade das mulheres, e por esta razão os homens ditaram e regularam as vontades destas. Estes são mitos que justificam a submissão feminina ao homem, bem como a sua dependência deste. Ambos os mitos são assim importantes quando pretendemos compreender as ideias sobre a formação da raça humana e consequentemente a sua hierarquia e a diferenciação de papéis de género na sociedade. Pois como nos diz POMEROY (1995: 1) “Myths are not lies, but rather men´s attempt to impose a symbolic order upon their universe.”
Notas de rodapé:
[1] ZEITLIN (1996: 60-61).
[2] Tradução de PINHEIRO (2000: 70-71).

